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Depois de ver a morte, é possível morrer de amor por alguém?

Entrevista Cristiano Burlan («Fome», BRASIL), por Stefania Di-Iulio de ©PuntoLatino

«Fome» de Cristiano Burlan segue as deambulações de um morador de rua em São Paulo. Pouco a pouco vamos descobrindo sua historia. Depois de ver a morte, é possível morrer de amor por alguém?

 

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O diretor brasileiro Cristiano Burlan com Stefania Di-Iulio de ©PuntoLatino, Genebra novembro 2015.

 

— O filme segue o cotidiano de um personagem extraordinário : Marlbrough. Como lhe veio a ideia desse personagem?

— O filme não nasce de uma ideia, nasce quase de um desassossego. O filme faz parte de uma tetralogia, composta por quatro filmes em preto e branco onde o personagem principal é São Paulo. O protagonista de Fome é um grande crítico brasileiro e ensaísta, Jean—Claude Bernardet. Já faz 10 anos que ele não escreve, não dá mais aulas e se tornou ator. Sempre me chamou atenção em São Paulo e outras cidades do mundo essas pessoas que vivem nas ruas. Pesquisando eu descobri que nem todas vivem por falta de opção, mas sim por opção. E querendo ter uma relação mais vertical com esses espaços da cidade, acabei tendo a sensação que talvez seja um ato de resistência morar na rua, mas eu não queria romantizar isso. O filme tem uma estrutura de dramaturgia onde dá muitas possibilidades para que os atores fossem quase co—roteiristas. O nome do personagem surgiu de uma improvisação. Mas talvez o filme segue esse personagem sobre uma relação de invisibilidade que nós temos nessas grandes cidades, dessas pessoas que estão à nossa volta e que a gente não percebe mais, como se fossem parte da arquitetura da cidade.

 

— Marlbrough é interpretado por Jean—Claude Bernardet, de origem francesa, crítico de cinema, ensaísta, roteirista, professor aposentado da escola de comunicação e arte da USP, diretor e escritor. Porquê essa escolha?

— A tetralogia inicia em 2011 com o filme chamado Sinfonia de um homem só, mas ele só começa a trabalhar comigo no segundo filme da tetralogia, Amador, onde ele faz um crítico, depois no Hamlet, adaptação de Shakespeare, ele faz o fantasma, o pai do Hamlet. Agora terminamos outro filme que se chama No vazio da noite, são pessoas que se encontram à noite, mas é colorido, não é mais em preto e branco, são conversas pela cidade. Ele vai fazer meu próximo filme que é uma adaptação da trilogia tebana, «Édipo Rei», «Édipo em Colono» e «Antígona», onde ele faz o personagem de Tirésias. Fora isso estou fazendo um documentário inspirado no documentário que fizeram com Gilles Deleuze, «O abecedário de Deleuze», o título do filme é O abecedário de Jean-Claude Bernardet. Eu faço entrevista com ele há quatro anos, só que nosso contrato de cavalheiros, não assinado claro, é que só posso mostrar esse filme depois que ele morrer. Ele tem 79 anos e foi um dos primeiros intelectuais do país a assumir que era soropositivo, ele tem AIDS há muito tempo e é um ativista político também. Nós morávamos no mesmo prédio, o edifício Copan, de Niemeyer, em São Paulo, onde vivem mais de 2000 pessoas. Então foi um encontro de acaso e disso surgiu um interesse mutuo em trabalhar juntos. Mesmo não sendo muito novo, ele faz parte de um movimento do cinema brasileiro, que é uma nova geração de cineastas. E esse tipo de cinema, um cinema marginal, um cinema de risco, lhe agrada muito, então houve esse encontro a pesar de serem gerações distintas. Ele também trabalha com outras pessoas, como Cao Guimarães, Kiko Goifman, mas eu creio que o realizador com quem ele tem tido uma relação mais vertical, acabou sendo comigo.

 

— Durante o filme, descobrimos que Malbrough era acadêmico do cinema. Esse paralelo entre realidade e ficção dá a impressão que estamos por momentos no registro documental. É sua intenção deixar vaga essa fronteira entre realidade e ficção?

— Quando Truffaut lançou «Os incompreendidos» em Cannes, fizeram essa pergunta para ele, » o quê é verdade, o quê é mentira?», ele disse que o que não é esperado no real, é real. Mas eu acho que ele está querendo dizer que talvez vivêssemos numa época de ingenuidade. É como na literatura, você não consegue colocar o mundo dentro da ficção. Eu realizei também que faz muito tempo que eu parei de pensar nessa distinção entre documentário e ficção. Mas eu também acredito que não é «hibridismo», um termo um pouco pejorativo que se usa hoje em dia para categorizar um filme que mistura documentário e ficção. Ninguém é natural diante de uma câmara. Se eu filmo uma pessoa que é um ator ou não, essa pessoa tem uma articulação de si mesma. O que me interessa é filmar as coisas da vida, um rosto, um corpo que se movimenta no espaço. Mas é claro que quando você trabalha num lugar onde você está querendo aprofundar essa relação com a dramaturgia, o ator não é só uma construção de uma coisa que propuseram para ele, ele parte de coisas pessoais, mas não para falar dele como se fosse uma terapia. O que ele quer discutir são coisas do mundo, coisas importantes, então essas coisas passam por ele. Isso acaba gerando um ruído, e é difícil falar se é documentário o ficção. Talvez seja um discurso sobre a realidade. Sinceramente eu não penso nisso quando faço um filme.

 

— Outro personagem importante do filme é a cidade de São Paulo. Porquê São Paulo?

— São Paulo é uma cidade muito dura. Eu ganhei e perdi muitas coisas lá. Tem um fotógrafo da urbe, Cristiano Mascaro, que fez um livro que se chama «Luzes da cidade» e esse livro me impressionou pelos ângulos distintos. Um dia eu encontrei com ele numa exposição e a gente conversou. Eu perguntei como ele conseguiu encontrar esses ângulos tão distintos na cidade, ele disse «eu não tenho carro, eu caminho pela cidade». Eu também não tenho carro e o cinema paulista dos anos 60 conseguia ter essa relação mais intrínseca com a cidade, acho que a gente acabou perdendo um pouco isso. Eu morei um pouco no centro, isso me atrai, mas é uma cidade dos extremos. Ela vive um apartheid: uma região burguesa entre a zona oeste e sul, separados por dos rios, o Tietê e o Pinheiros. Fora isso existem bolsões de pobreza de extrema violência. É uma cidade muito dura para se encontrar beleza e poesia. Você precisa ter um olhar muito generoso para querer encontrar beleza nesse lugar tão feio e cinza. É uma selva de pedras, uma cidade em concreto.

 

— O filme gira em torno do questionamento :»Depois que se viu a morte, é possível morrer de amor por alguém»? Como interpretar essa pergunta no contexto do filme?

— Essa pergunta parte de dois pensamentos, de Walter Benjamin e de Theodor Adorno. Eu acho que tem a ver com isso: quando você passa por muitas tragédias, vê o horror, como se manter ainda humano diante das dificuldades da vida? Eu não pretendo responder a essa pergunta no filme, é mais um questionamento. É quase uma «mea culpa» que eu faço também, porque no filme eu entrevisto personagens que não são atores, tem essa mescla e eu sempre me pergunto que direito eu tenho de fazer isso com as pessoas, de construir meu próprio discurso, isso é um ato de crueldade. Mas ninguém é ingênuo. Quando uma pessoa vê uma câmara diante do seu rosto, ela sabe que vai ser filmada. Talvez não tenha a resposta para a sua pergunta.

 

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Fotograma de «Fome»

 

— Você também trabalha com teatro. Quando você faz um filme, você usa elementos ou técnicas do universo teatral?

— Sim, com certeza, porque o pouco que eu sei de dramaturgia, eu o aprendi no teatro. Mas eu passei 14 anos sem dirigir uma peça porque o teatro exige um profundo conhecimento do seu oficio. Claro o cinema também, mas o cinema tem uma gramática de técnicas que depois de algum tempo fazendo, você domina; não com mais facilidade, mas é possível que você tenha um acesso ao conhecimento, ás técnicas, á toda a metodologia, á gramática audiovisual, muito mais fácil. Mas o cinema também exige uma maturação como artista e como ser humano. No teatro, o lugar é completamente diferente, porque você depende muito do outro. No cinema também, mas existe uma hierarquização da relação ai. No teatro não, o trabalho se constrói dentro de uma cartografia, de um corpo e esse corpo se chama ator.

Com certeza eu bebi muito na fonte dos grandes dramaturgos como Shakespeare; Tchekhov também me influencia muito. Não tem como você trabalhar no cinema, você construir uma dramaturgia, uma peripécia sem passar por esses grandes dramaturgos da historia do teatro. O teatro em termos de estéticos também me ajuda muito, em construção sonora, porque no cinema você tem como dar um zoom, você fecha um quadro. No teatro é um plano geral aberto, a construção dessa decoupagem é feita na sensibilidade de quem assiste á peça a través de uma relação entre o som, as luzes, esse claro-escuro. A luz não se meche no teatro então esse aprendizado acaba respingando no cinema.

 

— «Fome» está destinado a um público conhecedor de cinema ou é accessível para todos?

— Isso é uma pergunta muito difícil. Claro que quando você faz um filme em preto e branco, onde você aborda as questões que talvez as pessoas não queiram falar, isso acaba levando o filme para um núcleo, para cair num lugar de experimental ou de cabeçudo demais. Mas eu acho que meus filmes são comerciais, todo filme encontra seu público. Acho que é uma perda de tempo e uma certa ingenuidade, você realizar um filme pensando em quem vai assistir. Eu não sei quem vai sair de casa daqui a um ano e vai ir até a sala de cinema. Estou fazendo um filme aqui agora sobre Jorge Luís Borges. Quando Borges lançou seu primeiro livro, vendeu 37 volumes, mas ele conhecia todas as pessoas que compraram seus 37 livros. Depois quando ele começou a vender 5’000, 10’000, 100’000 livros, ele não conhecia mais o gosto e a reação das pessoas. Eu acho que cada filme encontra seu público, você não tem como ter certeza que ninguém vai ver o quem vai assistir. Os filmes encontram seu espaço, pode ser agora, pode ser depois, pode ser nunca. É como se o público do filme já existisse e a pergunta é como encontra-lo. É um trabalho muito duro.

 

— Quais são seus futuros projetos?

— Eu estou montando uma peça sobre Emil Cioran, um filósofo romeno. Se chama Música para o suicídio, estreia em março. Também estou realizando um documentário sobre um artista plástico, um escultor, Nelson Felix. Estou montando No vazio da noite, que é uma ficção, e um documentário sobre um grupo de teatro na periferia da zona leste de São Paulo. Mas o meu próximo trabalho grande, que me assusta um pouco é um documentário que eu vou realizar sobre o assassinato da minha mãe. Se chama Elegia de um crime e encerra uma trilogia, a trilogia do luto. Em 2007 eu fiz Construção sobre a morte do meu pai, em 2013 Mataram meu irmão sobre o assassinato do meu irmão e esse agora. Então na verdade essa quantidade de trabalhos que eu estou fazendo, é para hesitar o momento de fazer o filme sobre a minha mãe, que talvez seja meu trabalho mais difícil, que vai me exigir mais, mas com certeza é um rito de passagem para mim.

 

Muito obrigada Cristiano pelas suas respostas!

 

Genebra, novembro 2015

 


 

 

 


 

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